Imaginar o ambiente descrito no post anterior, considerando sua específica carga de elementos visuaudiolfatacteis, é algo que circunscreve e demarca uma época igualmente específica. Podemos reconhecer na cena diversos elementos de uma paisagem urbana contemporânea pós-eletrificada. Há uma festa, possivelmente com um número menor de pessoas que o volume de som poderia para épocas anteriores sugerir – as tecnologias de gravação, amplificação e reprodução sonora permitem que se faça muito barulho com pouco! Estimulações se insurgem de todos os lados, no melhor estilo do espaço acústico. A proximidade geográfica de eventos completamente alheios à festa (como a criança berrante em algum lugar outro) é cada vez maior, de modo que o som ao fundo de uma festa é constantemente uma outra festa, num fogo contra fogo interminável, elevado em alguns momentos, reduzido em outros. Mas há cidades que nunca dormem...
Para os que possam ouvir (sem excluir as máquinas de reprodução sonora), poderíamos entender o ambiente descrito como uma paisagem sonora. Termo concebido nos estudos efetuados por R. Murray Schafer e Barry Truax a partir dos anos 60 (coroados no livro de Schafer de 1977 “The tuning of the world”), fabricado num conjunto de ferramentas que visam dar conta de fazer a história das transformações que o ambiente audível sofre, sofreu e sofrerá ao longo da história dos procedimentos de civilização.
Estar em qualquer parte do globo implica estar cercado de sons, cuja interação dinâmica delimita uma paisagem sonora, um espaço experiencial auditivo. Em "The tuning of the world" Schafer parte de descrições literárias (uma vez que só se tornou possível algum modo de registrar paisagens sonoras a partir do séc. XX) e de inferências tendo como base o conceitual da acústica, procurando acompanhar estas transformações. Como uma paisagem sonora se alterou a partir da entrada de cada nova tecnologia? Que tipo de demandas sonoras poderiam estar em jogo nesta nova tecnologia que deram origem a outras tecnologias e a novas demandas? Além disso, como um certo tipo de paisagem sonora poderia influenciar determinada organização cultural, seja em suas produções, na sua sistematização de valores, e vice-versa?
No percurso dessa história, duas condições de paisagem se colocam no cerne da transição da paisagem de características mais rurais para a de características mais urbanas, Hi-Fi e Lo-Fi. Uma paisagem sonora que tende ao Hi-Fi é uma paisagem na qual seus elementos são facilmente audíveis separadamente, pode-se acompanhar os momentos de seu surgimento, seu desenvolvimento e extinção. A condição Lo-Fi, em oposição, os sons separados se acumulam e se entremeiam uns nos outros, tornando difícil distinguí-los tanto uns dos outros, quanto a distância, uma vez que são aniquilados, obscurecidos em muito antes de chegarem aos ouvintes.
Como mostra Schafer,
"A paisagem sonora hi-fi é aquela em que os sons separados podem ser claramente ouvidos em razão do baixo nível de ruído ambiental. Em geral, o campo é mais hi-fi que a cidade, a noite mais que o dia, os tempos antigos mais que os modernos. Os sons se sobrepõem menos freqüentemente; há perspectiva – figura e fundo. (...) O ambiente silencioso da paisagem hi-fi permite ao ouvinte escutar mais longe, à distância, a exemplo dos exercícios de visão à longa distância no campo. A cidade abrevia essa habilidade para a audição à distância, marcando uma das mais importantes mudanças na história da percepção."[1]
Retomando as questões colocadas anteriormente, como poderiamos entender os efeitos da passagem de uma exposição de paisagem sonora Hi-Fi para Lo-Fi? Em que medida podemos associar as transformações na paisagem sonora, às passagens do espaço visual para o acústico? Os efeitos de uma paisagem sonora Lo-Fi poderiam ser entendidos como uma saturação efetuada pela audição, transbordando aos demais sentidos, das características do espaço acústico?
Historiar as paisagens sonoras é especialmente fazer uma história sobre as transformações que homem e a tecnologia vêm promovendo, um ao outro, durante os milênios eternos de sua relação.
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