Dentre as muitas ficções sedimentadas como estatuto de verdade ao longo dos séculos pela cultura ocidental, uma das mais fantásticas é a idéia de hegemonia da visão sobre os demais sentidos. No entanto, curiosamente, o olhar entronizado como principal sentido para a aquisição de conhecimento não é um olhar "natural", e sim um olhar aparelhado, artificializado, calibrado pelo uso de próteses, constantemente adaptado aos contextos visuais e à velocidade de cada época.
Victor Hugo, por exemplo, durante a sua primeira viagem de trem, lamentou não conseguir discernir a paisagem através da janela, apenas traços e borrões que se fundiam numa espécie de dança amalucada. Algo bastante similar ao que ocorre hoje quando se tenta apreender pela primeira vez certos detalhes nos bruxuleantes cenários dos video-games, ambientes nos quais as gerações mais jovens se sentem perfeitamente à vontade.
Na segunda metade do século XIX, foi em torno do problemático conceito de objetividade que um rigoroso estatuto de visualidade se elaborou. E a fotografia tornou-se o seu emblema por excelência, ao disponibilizar a garantia material para o embrionário regime de certeza visual. Certeza de transparência do mundo cobiçada desde o uso dos artifícios óticos quatrocentistas, cuja finalidade era restringir os pecados da percepção através de próteses corretivas para o olho humano, como a perspectiva, a tavoletta de Brunelleschi e a câmara obscura e, mais tarde, no século XVII, no emprego das próteses óticas como o telescópio de Galileu e o microscópio de Anton van Leeuwenhoek.
A visualidade clássica, entretanto, ainda lograva ser concebida em analogia à experiência tátil. Jonathan Crary menciona a Lettre sur les aveugles a l'usage de ceux qui voient (1749), na qual Diderot, influenciado pelo empirismo de Locke, discorre sobre o matemático cego Nicholas Saunderson (1682-1739). Professor em Cambridge e considerado uma autoridade em geometria euclidiana e ótica newtoniana, Saunderson servia-se de um pequeno aparato constituído de contas e cordões para calcular e apreender as formas geométricas. Por conseguinte, de acordo com o seu exemplo, Diderot concluiu que
"Concebe-se sem dificuldade que o uso de um dos sentidos pode ser aperfeiçoado e acelerado pelas observações do outro; mas de modo algum que haja entre suas funções uma dependência essencial. Há seguramente nos corpos qualidades que jamais perceberíamos sem o toque; é o tato que nos instrui acerca da presença de certas modificações insensíveis aos olhos, que só as percebem quando foram advertidos por este sentido; mas tais serviços são recíprocos; e naqueles que possuem a vista mais fina do que o tato, o primeiro desses sentidos é que instrui o outro da existência de objetos e das modificações que lhe escapariam devido à sua pequeneza" (DIDEROT: 1979, p.24).
O breve ensaio, pelo qual Diderot permaneceu encarcerado em Vincennes durante três meses, ressalta Crary, decerto “não é mais uma depreciação do sentido da visão do que uma recusa à sua exclusividade”, embora o pensamento do enciclopedista destoasse do contexto em que, nas palavras de Foucault,
"A história natural não se tornou possível porque se olhou melhor e mais de perto. Em sentido estrito, pode-se dizer que a idade clássica se esforçou, se não por ver o menos possível, pelo menos por restringir voluntariamente o campo de sua experiência. A observação, a partir do século XVII, é um conhecimento sensível combinado com condições sistematicamente negativas. Exclusão, sem dúvida, de ouvir-dizer; mas exclusão também do gosto e do sabor, porque com sua incerteza, com sua variabilidade, não permitem uma análise em elementos distintos que seja universalmente aceitável" (FOUCAULT: 2002, p. 181-182).
A hegemonia da visão distanciada através dos aparatos técnicos, e centrada na representação - embora não raro a acuidade das representações fosse menos preocupante do que a calibragem dos aparelhos - conseqüentemente, assumirá tamanha influência no processo de reconstituição dos saberes responsável pela transformação da história natural em biologia que, se “o cego do século XVIII pode perfeitamente ser geômetra, não será naturalista”, ironiza Foucault, pois, como ressalta Crary,
"A noção da visão como toque é adequada ao campo do conhecimento cujos conteúdos são organizados em posições estáveis delimitadas em um âmbito extensivo. Porém no século XIX tal noção tornou-se incompatível com um campo organizado em torno da troca e do fluxo, no qual um conhecimento adquirido através do toque seria irreconciliável com a centralidade dos signos móveis e bens cuja identidade é exclusivamente ótica" (CRARY: 1992, p. 62).
REFERÊNCIAS:
CARTWRIGHT, Lisa. Screening the body: tracing medicine´s visual culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.
CRARY, Jonathan. Techniques of the Observer: on Vision and Modernity in the Nineteenth Century. Cambridge: MIT Press, 1992.
DIDEROT, Denis. Carta sobre os cegos para o uso dos que vêem. IN: DIDEROT, Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, pp. 2-29.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. IN:CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, pp. 33-65.
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